Nesse caso, comemorar, que etimologicamente significa memorar conjuntamente, ou seja, coletivamente, é, em última instância, mais um exercício histórico que passa pela confrontação crítica da memória, o que proporciona conhecimento ou reconhecimento, do que uma simples e paralisante idolatria. Ou seja, o cânone, o que serve de parâmetro, na comemoração deve ser mais posto à prova que conservado ou protegido. Um clássico, no caso das produções culturais, não é o que não pode ser tocado, e sim o que é constantemente desafiado pelo tempo, conseguindo, de algum modo, manter-se relevante, necessário, atual.
O ano de 2012 traz no cenário musical o centenário de nascimento de Luis Gonzaga, um dos pais da nordestinidade, e de Erivelton Martins, forte representante da veia passional do homem brasileiro; na literatura, Jorge Amado, talvez o maior exportador de uma imagem baiana do Brasil, e Nelson Rodrigues, provavelmente nosso maior teatrólogo, ocupado em desvelar nossas libertinagens e recalques, ambos completariam cem anos; e há cento e dez anos nascia Carlos Drummond de Andrade, ápice da poesia moderna e observador da modernidade, apenas alguns meses depois de Sérgio Buarque de Holanda, um dos destaques de nossas ciências humanas, teorizador da cordialidade brasileira.
Dentre tantos que ainda poderiam ser citados, há um que, se vivo, decerto diria ser bobagem qualquer lembrança mais efusiva de sua obra, advertindo tratar-se apenas de alguns livros para o entretenimento de leitores e um meio de ganhar a vida. É Graciliano Ramos, que costumava se chamar de “sapateiro da literatura”. O velho Graça (ou ainda, Major Graça), nasceu num vinte e sete de outubro, há cento e vinte anos, e a seu contragosto ouviremos e falaremos muito dele nas próximas décadas – exemplo disso é que a famosa Festa Literária Internacional de Paraty do ano que vem o trará como homenageado. Sua obra – curta, se comparada a da um Érico Veríssimo ou a de um José Lins do Rego – compõe um dos painéis mais ricos de nossas letras justamente por trazer questões que, se são datadas e localizadas, são também imorredouras e universais. Pode-se dizer que, ao lado de Machado de Assis, Lima Barreto e Guimarães Rosa, Graciliano Ramos foi quem melhor abarcou os problemas de formação, os limites e as potencialidades do homem brasileiro moderno – moderno aqui entendido como republicano.
Calçado na experiência e nos pressupostos realistas, o autor de Vidas Secas soube, como poucos, interpretar o Brasil num suporte que, se em nada lembra o estudo acadêmico (aprumado no tripé embasamento teórico-metodológico, pesquisa em fontes e uma narrativa problematizada), a ele nada deve em rigor e verossimilhança, apenas exigindo de seu leitor que compreenda tratar-se de obra guiada pela verdade poética que, contudo, no caso específico de Graciliano, nunca é resultado de descuramento na análise dos motivos culturais e sociais que moldam as ações de seus personagens vistos em isolamento – essa é, sem dúvida, uma de suas marcas mais fundas, garantindo sua sobrevivência como clássico.
Conhecer (ou reconhecer) esse singular homem das letras passa pelo exercício de caminhar por veredas da sua trajetória que são indissociáveis da história política e literária do Brasil. Graciliano Ramos foi um grande escritor, mas não somente – veja o quadro “Ramo por ramo de uma vida”.
A vida do escritor alagoano foi marcada por partidas forçadas e retornos dolorosos, prisões, aperto orçamentário e polêmicas. Escritor profissional tardio, Graciliano foi ainda comerciante, professor, prefeito, diretor da Imprensa Oficial de Alagoas e secretário estadual de Educação, revisor em diversos jornais, inspetor de ensino no Rio de Janeiro e presidente da Associação Brasileira de Escritores – uma vida ladeada pela atividade cultural e política.
Ao longo de quase sessenta e um anos e incontáveis cigarros Selma acendidos em sucessão, o autor de Memórias do Cárcere deixou uma imagem que pendula entre a casmurrice e a graciosidade, o respeito quase repelente e a honestidade agregadora. João Cabral de Melo Neto, por exemplo, nunca se encorajou o suficiente para conseguir adentrar-se na Livraria José Olympio, ir até os fundos, achegar-se ao já reconhecido escritor de Angústia, sentado num banco de madeira, lendo e fumando, e dirigir-lhe a palavra ou pedir-lhe uma opinião. Aliás, Graciliano tinha maneiras bastante peculiares de transformar certas atitudes mal-humoradas, passíveis de serem interpretadas como grosseiras, em tiradas cortantes que mais levavam ao riso que ao aborrecimento. Certa vez, perguntaram-lhe a opinião sobre determinado livro. A resposta: “Não li, e não gostei”. Noutra feita, caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro com o filho Ricardo Ramos, também escritor, ouve a pergunta: “Por que você não usa reticências e exclamações?” A resposta de Graciliano, registrada nas memórias do filho, saiu pronta: “Reticências, porque é melhor dizer do que deixar em suspenso. Exclamações, porque não sou idiota para viver me espantando à toa.” Por outro lado, a juventude intelectual carioca dos anos 1940 o tinha como farol, e não raro visitava sua casa aos domingos para conversar com o Velho ou ouvir passagens dos manuscritos do que viria a ser Memórias do Cárcere.
Mas, o que a maioria dos que conviveram de perto com o escritor destaca é o exercício do resguardo aliado a uma incessante luta pela liberdade literária, valorização da literatura brasileira e justiça social, elementos que garantiram a um homem que sempre teve vida pública, tanto no campo artístico quanto no político, ter sua imagem associada à modéstia, à honestidade e ao equilíbrio. Algo raro até nos círculos mais medíocres, incluindo-se as igrejas acadêmicas e as associações de variados matizes, sejam seus elementos competentes ou não.
Em 1948, o suplemento “Letras e Artes” do jornal A Manhã, pediu a Graciliano que fizesse uma espécie de autorretrato. É válida a transcrição do que o Velho escreveu sobre si mesmo. Ela serve para demonstrar o tom seco, conciso, quase maquinal que sua escrita por vezes acabou encarnando.

Ramo por ramo de uma vida
1892 – o nascimento em Quebrângulo, interior de Alagoas. Filho mais velho do casal Sebastião Ramos e Maria Amália Ramos, o menino Graciliano viveria os primeiros anos entre alpendres de fazendas e balcões de vendas no interior do Nordeste.

1895 – a primeira aventura. A família Ramos se muda para o interior de Pernambuco, em Buíque, quando o pai, por influência do sogro, resolve entrar no ramo da criação de gado. A seca quase destrói os projetos de Sebastião Ramos.

1899 – o primeiro retorno. A família volta para o Estado de Alagoas, mais especificamente a cidade de Viçosa, onde o pai, agora comerciante, ganha notoriedade local, chegando a ser juiz substituto, embora, como registra Graciliano em Infância, não percebesse nada de lei.

1904 – a primeira publicação. O conto O Pequeno Pedinte sai no jornal local de Viçosa, O Dilúculo, aos vinte e quatro de julho. Graciliano, com apenas doze anos, era também um dos editores. O editor-chefe do jornal era Mário Venâncio, um funcionário dos Correios que trazia cabeleira e modos excêntricos, sendo o primeiro mentor de Graciliano. Figura igualmente importante foi o tabelião Jerônimo Barreto, dono de uma biblioteca razoável que o menino Graciliano rapidamente devorou.

1905 – a segunda aventura. Muda-se para Maceió, onde cursa o ginasial em regime de internato. Lá, conhece os clássicos russos e aprende a ler em francês, inglês e italiano. Nessa época compõe basicamente sonetos, que manda para várias revistas do país. Esses “sonetos idiotas”, como depois ele passaria a chamá-los, renderam certa fama local a Graciliano, chegando o jovem estudante a figurar num inquérito promovido pelo Jornal de Alagoas como uma das promessas literárias do Estado. Nessa entrevista, com apenas dezoito anos, ele já demonstra características que o acompanharão por toda a vida literária: a lucidez pessimista e a autocrítica implacável, a clareza do papel da literatura e a retidão da opinião curta e seca, além da filiação ao realismo.  

1910 – o segundo retorno. A volta para o interior do Estado coincide com mais uma mudança da família, agora instalada na cidade de Palmeira dos Índios. Nesse período, dedica-se à administração dos negócios do pai. Também colabora em vários periódicos, incluindo a famosa revista O Malho. Sua produção ainda é basicamente de sonetos. Usa os pseudônimos Feliciano Olivença, S. de Almeida Cunha, Soares de Almeida Cunha e Soeiro Lobato.

1914 – a maior aventura. A mudança mais radical ocorre em companhia do amigo J. Pinto da Mota Lima Filho. A dupla vai para o Rio de Janeiro. Graciliano quer tentar a vida escrevendo em jornais da então Capital Federal, mas acaba trabalhando apenas como revisor (chamado à época de “foca”) em três periódicos: Correio da Manhã, A Tarde e O Século. No entanto, durante 1915, consegue espaço de cronista regular em dois jornais: Jornal de Alagoas e o fluminense Paraíba do Sul. As crônicas desse período compõem a primeira parte do livro póstumo Linhas Tortas, que traz ainda as crônicas publicadas em Palmeira dos Índios e um apanhado de crônicas e artigos publicados avulsamente ao longo da vida.

1915 – o dramático retorno. Em setembro, Graciliano recebe um bilhete pedindo seu retorno imediato a Alagoas. Um surto de peste bubônica varrera a região e levara de uma só vez três de seus irmãos, um sobrinho e deixara a mãe e duas irmãs em estado grave. Graciliano chega à casa dos pais e encontra a namorada que deixara na cidade. Maria Augusta cuidava dos doentes e dava conforto à família. No mesmo ano estariam casados e teriam quatro filhos.

1920 – a viuvez. Maria Augusta morre no parto do quarto filho, na verdade a primeira filha. Pai de quatro filhos, viúvo aos vinte e oito anos, Graciliano mergulha na administração da loja Sincera e no curso de francês que ministra no Colégio Sagrado Coração. Mas a atmosfera da situação só pode ser compreendida nas palavras do próprio homem, em carta ao amigo J. Pinto da Mota Filho: “Pedes-me que te fale de minha vida e de meus filhos. Que te posso eu dizer, meu bom amigo? Sou um pobre-diabo. Vou por aqui arrastando-me, mal. Há cinco anos não abro um livro. Doente, triste, só – um bicho. Tenho quatro filhos: Márcio, Júnio, Múcio e Maria. Esta, coitadinha, provavelmente não viverá muito, está à morte. Se morrer, será uma felicidade. Para que viver uma criaturinha sem mãe? (...) São eles que aqui me prendem, meu velho. Já teria voltado para aí, se tivesse ficado só. Malgrado as desilusões, a cidade ainda me tenta. Se um dia me for possível, voltarei. É um sonho absurdo, talvez.”  

1921 – de volta às letras. Após muita insistência do padre Macedo, Graciliano compra a ideia de montar um jornal em Palmeira dos Índios, circulando o primeiro número em 30 de janeiro. O periódico semanal O Índio duraria exato um ano e Graciliano contribuiria regularmente em pelo menos duas colunas, assinando como J. Calisto e Anastácio Anacleto. Nesse período, suas crônicas são extremamente ácidas, cheias de humor amargo.

1924 – os primeiros contos. O surgimento de Paulo Honório, João Valério e Luis da Silva, personagens centrais na obra de Graciliano Ramos, é desse período, quando o escritor fabrica pequenos contos que ficam fermentando numa gaveta de guardados. Desses personagens, João Valério é o primeiro a ganhar uma trama mais elaborada. E, a partir do ano seguinte, Graciliano começaria a escrever Caetés, seu primeiro romance, que ficaria pronto somente em inícios de 1928, sendo lançado apenas cinco anos depois.

1928 – o prefeito. Graciliano era figura pública na cidade: comerciante, filho de comerciante, professor, jornalista. Três de seus ex-alunos tiveram a ideia de lançá-lo candidato a prefeito. Fora eleito com o apoio do chefe político local, que era do Partido Democrata. É válido lembrar que a chamada política dos coronéis dominava o período – comentário à parte, em alguns lugares, com vestimenta moderna, ainda domina, não é verdade? – e, nas palavras do próprio Graciliano, temos noção de como era o processo eleitoral à época: “Assassinaram meu antecessor. Escolheram-me por acaso. Fui eleito naquele velho sistema das atas falsas, os defuntos votando, e fiquei vinte e sete meses na prefeitura”. As reportagens do período mostram Graciliano como um prefeito laborioso e inovador, mas a notoriedade que ele ganhou veio através dos relatórios administrativos enviados ao governador Álvaro Paes. Um misto de linguagem técnica com comédia de costumes. Não é exagero dizer que os relatórios funcionaram como uma espécie de obra impactante que escondia não um enfant terrible, mas um escritor tardio já assentado na maturidade, mesmo sem publicação relevante. Os relatórios ganharam o país e as rodas literárias. O escritor carioca Marques Rebelo os comparou ao melhor de Machado de Assis, e o poeta e editor Augusto Frederico Schmidt enviaria cartas a Graciliano solicitando algum romance que porventura estivesse numa gaveta à espera de publicação. Esse romance era Caetés, que viria à luz pela editora do poeta. Ainda nesse tempo, Graciliano conhece, galanteia e se casa com Heloísa, sua companheira até o fim da vida.

1930 – renúncia, outra mudança e nomeação. Renuncia ao cargo de prefeito, após aceitar convite do governador Álvaro Paes para assumir a diretoria da Imprensa Oficial de Alagoas, ficando nesse cargo até fins do ano seguinte. Nesse tempo, esteve preso vinte e quatro horas durante a reviravolta política de outubro, quando Getúlio Vargas toma o poder federal e intervém nos governos estaduais. O temor de uma batida policial na casa de Graciliano fez com que Heloísa e duas cunhadas enterrassem os originais de Caetés embaixo dum pé de sapoti.

1932 – o último retorno. Devido a uma cirurgia na perna, Graciliano passa praticamente todo o ano em Palmeira dos Índios, onde escreve São Bernardo na sacristia da igreja, enquanto aguarda, já sem paciência, o lançamento de Caetés. O romance de estreia emperrara na Editora Schmidt por um motivo bastante embaraçoso: os originais simplesmente haviam sumido. Houve pressão de todos os lados, ameaça de processos, Jorge Amado e o ilustrador Santa Rosa chegaram a ir a editora confiscar os originais que, finalmente, foram encontrados no bolso de uma capa de chuva esquecida num canto.

1933 – novamente no centro do poder. De volta a Maceió, é nomeado diretor de instrução pública, cargo equivalente hoje ao de secretário estadual de Educação. Também é contratado como redator do Jornal de Alagoas. Na capital, Graciliano encontra desafios similares aos da pequena cidade onde fora prefeito. Suas medidas e atitudes, austeras e impopulares, podem ter contribuído para sua prisão em 1936, juntamente com a suspeita de participação na chamada “Intentona Comunista”, de 1935, cujos focos foram Rio de Janeiro, Recife e Natal. Dentre essas atitudes e medidas estavam a não aceitação de qualquer tipo de indicação ou apadrinhamento para a assunção de cargos nas escolas e, a mais polêmica de todas, baixou portaria proibindo que se cantasse o Hino Oficial do Estado de Alagoas nas escolas públicas, por achar que se tratava de “uma estupidez com solecismos”. Nesse período, firma-se uma forte amizade entre Graciliano, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Jorge de Lima, todos morando em Maceió e unidos pelo amor à literatura e o ódio ao fascismo e ao getulismo, que começa a dar passos largos rumo à ditadura.

1936 – a prisão. As causas da prisão não são claras, afinal nunca houve processo formal. A acusação mais óbvia é a suspeita de participação, direta ou indireta, na “Intentona Comunista” de novembro de 1935. Com o Angústia escrito, mas não finalizado, entregue à mão da datilógrafa para revisão e cortes, o diretor de instrução pública é preso em Maceió no dia 3 de março. Os originais são recuperados por Heloísa, que os enterra no mesmo lugar onde se escondera os originais de Caetés. De trem, Graciliano vai com outros presos para Recife, e de lá viaja no porão do vapor Manaus, um calhambeque náutico que despeja no Rio de Janeiro, treze dias após a prisão em Maceió, dezenas de presos, políticos misturados a criminosos. Em agosto, Angústia é publicado sem a autorização do autor. Heloísa Ramos juntamente com o editor José Olympio tocaram o projeto. Angústia sai sem os habituais cortes do escritor, que se irrita com a publicação. Paralelamente, o livro ganha o prêmio Lima Barreto, organizado pela prestigiada Revista Acadêmica. A pressão para a soltura de Graciliano e outros presos aumenta, enquanto o estado de saúde do escritor piora consideravelmente, sobretudo pelo excesso de cigarro e pouca alimentação. O advogado de Luis Carlos Prestes, Sobral Pinto, é chamado por amigos de Graciliano para tentar sua libertação. A dolorosa experiência da prisão, degradação humana e todo tipo de humilhação, além do comovente caso da deportação de Olga Prestes para a Alemanha nazista, tudo está registrado em Memórias do Cárcere. Graciliano é solto em 3 de janeiro de 1937, bastante diferente do homem de há um ano.

1937 – a liberdade e as dificuldades.  Após nove meses de prisão, de volta às ruas do Rio de Janeiro, passados mais de vinte anos desde que estivera na capital, Graciliano morará em várias pensões. A família se reuniria novamente apenas no fim deste ano. Graciliano jamais voltaria a Alagoas. De início, morará no subúrbio, com José Lins do Rego, depois no Catete, na mesma pensão onde morava Rubem Braga. Graciliano tem sua vida zerada. Ao cansaço da idade e da sofrida experiência na prisão, juntaram-se a sensação de fracasso e a necessidade de começar tudo novamente. Todo mês, um aperto para honrar as contas. É nesse contexto que é gestado Vidas Secas, escrito aos pedaços e espalhados como semeadura de arroz. Os treze capítulos que compõem o livro sairiam em vários periódicos (O Cruzeiro, O jornal, Diário de Notícias, Folha de Minas, Lanterna Verde e La Prensa, de Buenos Aires). Lançado no ano seguinte, com grande vendagem e elogios da crítica especializada, Vidas Secas trazia Graciliano novamente para o estrelato das letras nacionais, embora, como sempre afirmou o autor, isso não fosse grande coisa, já que o país carecia de uma política cultural que valorizasse a literatura. A política cultural do Estado estaria voltada para demandas que promovessem o sedimento nacionalista e certo apelo fascista, frente ao liberalismo vacilante do entre-guerras.

1939 – o último emprego. Graciliano exerceu várias funções concomitantes à de escritor, a principal delas, revisor de jornais, mas o emprego fixo que manteve até o fim da vida foi o de inspetor do ensino secundário, conseguido por Carlos Drummond de Andrade, que atuava no Ministério da Educação e Saúde Pública. Nesse mesmo ano, Graciliano também é chamado para compor o quadro de colaboradores do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), do governo Vargas, agora plenamente instalado em seu Estado Novo. Primeiramente trabalha como revisor, mas em 1941 colabora no periódico oficial Cultura Política, publicando várias crônicas sobre o Nordeste. A ideia de Vargas era abarcar o maior número possível de membros da intelectualidade brasileira, independente de qual vertente pertencesse, com o fim de formar e informar uma imagem de Brasil. Graciliano nunca foi editado em seus escritos e desculpava-se do fato de contribuir no governo que o prendera alegando tratar-se de seu trabalho. Nunca teceu uma palavra elogiosa a Vargas. A partir de 1942 a relação de Vargas com a intelectualidade progressista ficaria cada vez mais forte, sobretudo a partir das exonerações de importantes membros do governo que compunham uma linha mais dura dentro do regime. No final dos anos 1930 e início do decênio seguinte, Graciliano publicaria o conto infantil A Terra dos Meninos Pelados, premiado num concurso do Ministério da Educação, e faria a tradução de Memórias de um Negro, de Booker Wasington. Participaria também de um projeto ousado: a escrita a dez mãos (com Jorge Amado, José Lins do Rego, Aníbal Machado e Rachel de Queiroz) do romance Brandão entre o Mar e o Amor, publicado pela Martins. A proposta coletivista ia para além do experimentalismo estético, significando, também, a experiência de construção socialista. A crítica torceu o nariz para o romance.

1942 – o cinquentenário. No Restaurante Lido, em Copacabana, amigos e admiradores de Graciliano organizaram um jantar comemorativo de seu quinquagésimo aniversário. Figuras de vários matizes e posições políticas, grandes nomes de nossas letras e de nossa crítica prestigiaram o tímido escritor. Houve até apostas para saber qual postura o escritor assumiria. No discurso de agradecimento, o velho Graciliano estava lá, equilibrado e consciente de seu papel como intelectual que, num país de poucas vozes, pôde cantar as dores de sua gente: “É preciso descobrirmos um motivo para esta reunião. Penso, meus senhores e amigos, que a devemos à existência de algumas figuras responsáveis pelos meus livros – Paulo Honório, Luiz da Silva, Fabiano. Ninguém dirá que sou vaidoso referindo-me a esses três indivíduos, porque não sou Paulo Honório, não sou Luiz da Silva, não sou Fabiano. Apenas fiz o que pude para exibi-los, sem deformá-los, narrando, talvez com excessivos pormenores, a desgraça irremediável que os açoita. É possível que eu tenha semelhança com eles e que  haja, utilizando os recursos duma arte capenga adquirida em Palmeira dos Índios, conseguido animá-los. Admitamos que artistas mais hábeis não pudessem apresentar direito essas personagens, que, estacionando em degraus vários da sociedade, têm de comum o sofrimento. Neste caso, aqui me reduzo à condição de aparelho registrador – e nisso não há mérito. Acertei? Se acertei, todo o constrangimento desaparecerá. Associo-me aos senhores numa demonstração de solidariedade a todos os infelizes que povoam a terra.”

1945 – filiação ao Partido Comunista Brasileiro. Aceitando o convite do próprio secretário-geral do partido, Luis Carlos Prestes, Graciliano engrossa a lista dos intelectuais simpatizantes às causas socialistas que formalizaram sua atuação política. No partido, trabalharia na célula Teodoro Dreiser, discutindo e propondo questões relacionadas ao papel da cultura, em especial da literatura, na construção de uma realidade socialista. Participou de vários comícios, e chegaria mesmo a sair candidato a deputado Constituinte pelo Estado de Alagoas. Jorge Amado fora eleito neste pleito e participaria ativamente na elaboração da Constituição de 1946. O PCB seria considerado ilegal em 1948 e seus membros eleitos seriam cassados. Nesse mesmo ano, Graciliano lança Infância, livro de memórias que, assim como Angústia e Vidas Secas, saiu pela Editora José Olympio.   

1950 – o maior golpe. A segunda metade dos anos 1940 foi um misto de sucessos – o lançamento de Insônia, livro de contos de 1947 – e desafios – como se mudar para um bairro melhor – que obrigaram a Graciliano, mais de uma vez, recorrer a novos empregos, como ser revisor do Jornal da Manhã. No livro O Velho Graça, de Dênis de Moraes, temos a rotina de Graciliano: pela manhã, escrever; a tarde, fiscalizar os colégios; à tardinha, conversas na José Olympio; e a noite, a redação do jornal para, como dizia o próprio Graça, fazer remendos nos textos dos jornalistas. Mas o início dos anos cinquenta não foi nada fácil: no partido, encontrava resistência em sua posição de não ceder ao chamado realismo socialista, linha que pregava uma literatura panfletária e fortemente guiada pelo dogmatismo em detrimento do equilíbrio que deve haver entre conteúdo e forma. No mesmo ano, Graciliano vê um fraco III Congresso Brasileiro de Escritores, organizado pela Associação Brasileira de Escritores (ABDE), o principal motivo, a debandada de vários intelectuais em represália à posição sectário da própria ABDE, aparelhada pelo PCB. Mas o maior golpe viria no campo familiar. Em agosto, Graciliano finalizava a tradução de A Peste, de Alberto Camus; Márcio, filho mais velho do escritor, então com trinta e quatro anos, envolve-se numa confusão com um companheiro de quarto de pensão e o mata a tiros. Márcio tinha sérios problemas psicológicos, agravados com a vida conturbada da família, repleta de separações e solavancos. Quatro dias depois, mesmo estando sob a atenção de Graciliano e do amigo Paulo Mercadante, preparando-lhe o espírito para enfrentar a Justiça, Márcio se mata.

1951 – o presidente da Associação Brasileira de Escritores. O contexto em que Graciliano assume a ABDE é de divisão, cenário que permanece no ano seguinte, quando é reeleito. Como presidente e membro do PCB, tenta diminuir a imagem de aparelhamento promovendo a união dos escritores brasileiros a partir de seus interesses profissionais e das questões culturais, daí, organizar o IV Congresso Brasileiro de Escritores sob essa pauta e publicar o importante artigo “Unidade em Defesa do Escritor”, de 1952. A tentativa de reaproximar antigos companheiros que saíram em revoada confrontava-se com a própria posição dentro do partido, sempre exigente em relação à escrita de Graciliano que, coincidentemente ou não, não lançara mais nenhum romance desde Vidas Secas.   

1952 – a viagem à União Soviética. Graciliano enfrentou várias forças dentro do partido, mas acabou sendo convocado para compor a delegação brasileira que iria aos festejos do 1º de maio, em Moscou. Os detalhes dessa viagem estão no livro Viagem, publicado postumamente por Heloísa Ramos. O encantamento com a experiência do socialismo real não cegou Graciliano, que, recolhendo dados para seu livro de depoimento, acabaria dispensando relatórios oferecidos pelo próprio Kremlin.

1953 – a morte no Rio de janeiro. Graciliano volta da viagem já doente. Câncer de pulmão. Seu sexagésimo aniversário, comemorado com o aniversariante ausente, foi um aviso do estado de fragilidade em que o Velho se encontrava. Suas energias agora estavam todas voltadas para a conclusão de suas memórias da prisão. Mas o Memórias do Cárcere não chegaria a ser concluído. Iniciada sua escrita em 1946, seria lançado postumamente, faltando o último capítulo. Graciliano Ramos morreu no dia 20 de março de 1953, deixando um riquíssimo legado cultural e uma história marcada pelo denodo às letras e o enfrentamento nobre da vida.

Fonte: Por Fabiano Mendes professor de História da USP